(Continuação)
Era cedo quando acordei naquela manhã, preparei-lhe o mesmo de sempre, o que todos os dias o seu corpo pele para se encobrir de
brilho próprio, preparei, tudo com todo o mesmíssimo cuidado, bem, mais cuidado
porque sabia o que estava para vir e queria, admito, queria surpreender o seu
doce coração para que ficasse, mas no fundo sabia que não valia a pena. Depois
de preparado encaminhei-me para a sala de estar, mas aí perdi-me em calafrios e
deixei o tabuleiro tombar aos meus pés. Contemplei o medo: mochila, cor de
sangria, tão cheia que até com arames enferrujados e ainda com sangue, de quem
uma hora atrás os tentou quebrar, fora presa, binóculos seguros à alça esquerda
da mochila com um pano ainda enlameado com a sujidade de uma frigideira
qualquer, cobertor infantil e com cheiro a alfazema amarrado com dois cordões,
um azul e outro branco, à alça direita da mochila, chapéu lixiviado, queimado e
desgastado pelo passar dos anos, pois era do nosso pai, ao lado da mochila. E por
terminado, olhei pela janela e vi, numa observação exagerada, mas amável: uma
bicicleta com uma carteirinha pendurada a um dos pedais (só a vi, porque ela
contara-me onde a iria esconder, ali estavam todas as suas poupanças durante
estes três anos) e com uma garrafa de água atada, com uma corda grossa e a
desfazer-se em fios, ao acento da própria bicicleta. Cheirava-me a poesia
trocada, a caminho revirado, a desafio, a mim não me agradava nem um pouco, a
ela era como se voltasse a nascer.
De repente os meus pensamentos assaltaram-me do olhar, ela
estava exactamente a minha frente, com um lenço na cabeça a encobrir-lhe metade
do seu cabelo alourado, uma saia comprida escondendo a beleza da pele acastanhado
das suas altas pernas, uns chinelos desgastados, velhos, desmascarando as suas
unhas ainda com vestígios de terra do nosso campo, uma camisola branca de
alças, feita a mão na casinha de costura aqui do lado, duas argolas que lhe
chegavam ao pescoço, oferecidas por mim ainda no seu aniversário deste ano e um
sorriso, um sorriso que arrepiava felicidade. Que aperto, enxergo-o agora
mesmo!
(Continua)