23.9.11

A flauta magica

Os dias foram passando, as noites começaram a escurecer e o meu coração a cada dia que passava aproximava-se mais do inverno e eu com este aperto enorme, nada mais conseguia esconder por mais tempo, queria poder ajudar quem não conseguia, queria fazer de algo impossível, possível, queria ser aquela menina de dez anos que todos podiam olhar para ela como um alguém, capaz.
Hoje sentada no banco do meu jardim com um bloco nas pernas e um lápis na mão, olho o céu e com lágrimas intensas e impossíveis de esconder choro, como nunca chorei.
Relembro-me de todas as noites passadas a janela entre aberta a escutar a sua musica suave e pormenorizada, relembro-me da sua sinceridade fluir em cada nota, relembro-me que hoje, tal como todas as noites, irei deixar a janela entre aberta, irei colocar uma cadeira, subir para cima dela e irei chorar só de ouvir os seus gritos, o seu desespero, a sua angustia, e por fim, irei levantar o rosto e olhar pela janela indo ao encontro de uma porta fechada e umas notas que interagiam na perfeição com o meu coração, fazendo com que não houvesse o mal e apenas um olhar profundo que nunca me virá na vida, nunca soubera que eu, vista como uma menina insignificante de dez anos, guardava os seus maiores segredos.
Tal como todas as noites irei sorrir com lágrimas nos olhos, olhando-o sentado na beira da sua janela com uma altura incrivelmente enorme, com os seus olhos brilhantes e a sua musica suave e de tal forma pura que se tornava algo palpável, algo que me serenava. Recordo-me ainda que hoje será mais uma das noites que verei que mais uns quantos cabelos deixou cair nos seus ombros, o seu cabelo macio e loiro estará despenteado e severamente cruzado, o seu rosto moreno mais uma vez mostrará algo tão vermelho que se notará mais perda de sangue no lábio inferior e no nariz, os seus olhos azuis claros se encheram de lágrimas que escorreram pela flauta entrando dentro dela e sendo as únicas incapazes de quebrar cada nota e verei ainda um corpo com roupas limpas e um moreno intenso e suave mas com negras por toda a parte. 
Hoje se eu nada fizer, se nada tentar fazer, será mais um dos dias em que o seu pai chegara bêbado a casa, beijará a sua mãe e a sua mãe na pura inocência irá se deitar e adormecer sem nunca saber que durante o seu sono, depois do beijo que recebia do seu marido, ele iria ao encontro do filho de ambos. E bêbado durante duas horas, todos os dias, a mesma hora, no mesmo sitio, espancava o próprio filho, deixando-o num estado degradado tanto fisicamente como psicologicamente, por isso é que hoje tento rezar por ele a quatro anos, para que deixe de ser espancado e para que nunca mais tente se atirar da janela abaixo por tudo o que passa, é verdade já tentou o suicídio, e hoje já não olha e toca apenas para o céu, hoje senta-se sempre de pernas para fora da janela, com os olhos fechados e lágrimas do inicio ao fim da melodia. 
Uma melodia nova todos os dias, mas por coincidência, todas são tristes e friamente lindas.
Terei de fazer algo mais, hoje se nada fizer, poderá ser a ultima noite que o sentirei, hoje se nada fizer poderá ser mais uma noite que ela esteja a sofrer. Hoje durante a noite irei chamar a minha mãe para ver o que se passa pela janela e ela chamará a policia, só espero que chegue a tempo, só espero que o rapaz que vi crescer, e que o trato como irmão sem ninguém saber, não desapareça juntamente com a melodia da sua flauta.
Já era noite, preparava a minha cadeira quando a minha mãe me bem dar um beijo na testa e eu como sempre reviro o rosto e apenas lhe sorrio e digo boa noite, mas desta vez disse-lhe ainda, "fica comigo, tenho algo demasiado serio para te mostrar" , "o que minha filha?" , "se confias numa rapariga de 10 anos, fica", ela ficou, sentou-se na cadeira que eu ofereci e espreitou pela janela, a hora certa, no lugar certo olhou e viu tamanho sofrimento que não suportou olhar mais depois da primeira pancada que o pai lhe deu, e ligou de imediato a policia. 
Agarrou-se a mim dizendo "não acredito que me escondeste isto, ele foi mais uma vitima de todos os que nada de pessoas têm, e tu, nada fizeste" e eu disse-lhe entre lágrimas, que a mais de quatro anos que isto acontece e que eu nunca soube o quão grave era, apenas senti desde sempre que a dor lhe desaparecia depois de tocar a flauta, disse-lhe que fazia de tudo isto um sonho, um sonho onde a cura para a sua dor era a flauta e que tal como a melodia fazia comigo, desde sempre pensei que a melodia o serenava e curava, mas enganei-me pois na noite em que fiz nove anos ele tentou suicidar-se e foi ai onde eu passei de criança a um alguém, um alguém que começou a chorar e a ganhar coragem para fazer justiça com isto que mal tratava a minha melodia, que a cada dia que passava rasgava mais um pouco do seu coração. 
E a minha mãe entre soluços disse, "só tens dez anos, e ele, ele só tem dezassete...porque..." . 
(Passado sete anos)
Não sei o que aconteceu, não sei se ele fugiu de casa ou se faleceu, sei que o pai dele foi preso e que a mãe dele foi entregue a família para ser ajudada a recuperar.Também não perguntei na altura a minha mãe e a mãe dele não me diria, era uma menina, na altura só tinha dez anos.
 Só sei que houve um dia que hoje a minha mãe ainda me recorda e me fala, houve um dia em que pedi para ir a seu quarto, mas ela não me deixara. Tendo certeza que eu iria lá durante a noite, espreitou pela janela vendo que eu tinha ido lá, e em seu lugar encontrei e trouxe para casa a flauta e um agradecimento com um dedo de sangue marcado na folha a dizer "Obrigada ao coração para quem sempre toquei. Eu sabia que a minha melodia tinha um toque especial. Eu sabia que me ajudarias. Hoje sigo o meu caminho sabendo que amei alguém, de uma forma especial, para além da minha mãe, sem saber. Hoje finalmente posso partir, pois sofri, mas fui amado.
Um abraço de quem sempre olhará por ti."
Ainda hoje leio e relei-o está carta.
Ainda hoje, toco na sua flauta a janela, para ele, pedindo desculpa por ter sido a criança que era na altura e ter reagido tarde de mais.
Ainda hoje, sei que sempre estarás cá, como ninguém está, eu sinto.
A minha mãe ainda hoje diz também, "tenho saudades dos dias em que pegavas naquela flauta e ias para o meio do campo tocar, ouvia-se a melodia certa, a melodia do coração, mas nunca percebi porque a tratei assim."